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História do Centro de São Paulo

Entre scientistas, confeitarias, bondes e muita garoa: um passeio pelo centro de São Paulo na virada do Século XIX

Por Lilia Katz Moritz Schwarcz 

 

"É São Paulo... climatericamente uma cidade européia apenas com os inconvenientes das mais bruscas mudanças de temperatura e das teimosias de um renitente nevoeiro acacimbado, a que se chama aqui a garoa, o que pode levar mui legitimamente um cronista amigo das novidades a chamar-lhe a cidade da garoa." Souza Pinto (1905)1

Cerca de três séculos depois de sua fundação, São Paulo não passava de uma calma aldeia colonial, estendendo-se pouco além dos estreitos limites do Tamanduateí e do Anhangabaú. A pequena população de no máximo 20 mil pessoas dormia cedo, já que as ruas não eram iluminadas, e o local era de pouco movimento. Era essa a representação que pairava sobre São Paulo: uma vila sem graça, uma cidade de barro, ponto de entroncamento de tropas; local de partida, não de chegada. Foi o café, sobretudo na década de setenta, que tirou a pacata cidade de seu sono colonial, transformando o vilarejo em centro do comércio cafeeiro; uma "metrópole do café".

É nesse contexto que se aparelha a região central da cidade, no sentido de lá concentrar "símbolos de riqueza e de civilização". Com efeito, ao lado do desenvolvimento material vinham os sinais de distinção; definitivamente era hora de criar uma imagem que melhor identificasse a cidade. É então que tal qual uma noiva orgulhosa o famoso triângulo central da cidade prepara-se para receber o futuro. Vamos a ele. 2

É no final do século XIX, por exemplo, que passou-se a priorizar edificações que dessem a São Paulo um perfil nitidamente urbano e moderno: os critérios para a construção de prédios foram padronizados, separaram-se com maior rigidez as áreas públicas das áreas privadas, a iluminação mudou do azeite para o querosene e para a iluminação elétrica a partir de 1891.  

A cidade vivia um processo quase completo de embelezamento: praças, lojas, passeios e principalmente a construção acelerada de vários palacetes faziam parte do novo cotidiano. Os estilos variavam mas a representação era uma só. Afinal, estava para ser encenado o teatro dessa nova elite paulista, tão carente de símbolos de civilização. 

"Faria comprar nas vestes de Paris, por agentes entendidos, secretárias, mesinhas de legitimo Boule. Teria couros lavrados de Cordoba, tapetes da Pérsia e dos Gobelins e fukasas do Japão. Julio Ribeiro, A carne (1887).3

Nesse ambiente chamava a atenção o animado movimento de veículos. O tráfego era tal que em 1873 a municipalidade designou locais específicos para estacionamento: Pátio do Colégio; Largo de São Gonçalo; Largo São Francisco e Largo da Luz. Essa é a época dos novos bondes movidos a tração animal, que acompanhavam a evidente expansão territorial e alteravam a pintura local. Em 1887 existiam sete linhas com 25 quilômetros de trilhos, 319 animais e 43 carros, que transportavam 1,5 milhão de passageiros por ano. De fato, a exploração dos bondes elétricos só começou na década de 1890, sem que os velhos modelos tenham sido substituídos de pronto. A grande novidade do início do século atual eram, no entanto, os primeiros automóveis, que apesar de poucos e muito barulhentos causaram verdadeiros tumultos na cidade. 

Nas lojas do Centro, já em finais do século, vendia-se de tudo: charutos importados, destilarias, tecidos ingleses, roupas com corte francês, especiarias do Oriente; enfim, através do consumo, a cidade fazia de si uma extensão ligeira do Velho Mundo, Mas não era só. Ávida por luxos europeus, essa nova elite alterava o panorama local com seus novos hábitos: trocavam-se violões por pianos ingleses, modinhas pela música francesa, o rapé da Bahia pelo charuto manilha ou havana, assim como quitutes caseiros por doces vindos da Europa. 

Essa é, também, a época dos grandes bailes, das confeitarias requintadas e das agitadas casas de espetáculos corno o Teatro Provisório, o Ginásio Dramático, o Polytheama e, entre outros, o famoso São José. É em 1911 que terminam as construções do Teatro Municipal, considerado, a partir de então, o edifício mais importante de São Paulo e quiçá diziam - da América. Por aqui desfilaram famosos cantores e atores vindos da Europa, assim como a musa Sarah Bernhardt, que esteve três vezes em São Paulo. Dizia-se que os estudantes acompanharam a artista em delírio até o hotel, e, estendendo suas capas para que ela pisasse, gritavam: " Pisez sur nous, Madame!". 

Por outro lado a instalação, nesse momento, da Pinacoteca (1911) e do Conservatório Dramático (1907) eram sinais de novas vogas artísticas e musicais. 

Mas não é só. Acentuou-se aos poucos, neste local, uma tendência herdada de períodos anteriores: o declínio das manifestações religiosas da era colonial. Com certeza, o menor pendor da população estava ligado aos novos divertimentos que a cidade oferecia. Bem lá, no famoso triângulo paulista, pipocavam os clubes recreativos, as quermesses, os saraus musicais, a lanterna mágica e a photographia animada, o cricket e o futebol entre ingleses, o ciclismo, as apresentações circenses, as touradas no largo dos curros e as brigas de galo, os esportes náuticos, a prática da bicicleta e o footing elegante na XV de Novembro. Os hábitos mudavam e o modelo era uma Europa divertida e refinada. 

Esse novo Centro ampliou os espaços sociais de convivência, até então praticamente restritos aos encontros familiares ou aos circuitos vizinhos às grandes fazendas. Com a vida urbana alteravam-se padrões e inaugurava-se uma nova arte: "o bem vestir". Adereços - dos xales aos leques para as mulheres, bengalas e chapéus para os homens -, cremes, cortes, penteados e sobretudo uma maior variedade nos tecidos darão o contorno das novas indumentárias. A partir de então, grupos distintos de tecidos tornam-se propriedade específica de cada um dos sexos. No caso das mulheres, generaliza-se o uso de linho e seda ou lã e seda nos vestidos de rua mais simples, reservando para os trajes de gala os brocados de ouro e prata, os tules ou a gaze cristalizada. Aos homens cabiam as fazendas mais ásperas, o linho e a lã, sobretudo nos espaços públicos. Sobreviviam, porém, na intimidade do lar, o camisolão de algodão e o velho chinelo castigado, uniforme essencial para essa sociedade pouco acostumada à novidade de uma vida social intensa. 

O Centro da cidade viu crescer, também, novas bibliotecas e livrarias. Em 1885, as livrarias paulistanas eram as seguintes: a Casa Eclética, na Rua São Bento; a Empresa Literária Fluminense, na Rua Direita; a Paulista, na Rua São Bento e a famosa Casa Garraux, que a princípio se instalou na Rua da Imperatriz, para depois mudar-se para a XV de Novembro. 

Os jornais, por outro lado, acompanharão as mudanças da cidade. De fato, a passagem do século assinala a transição da pequena para a grande imprensa. Os pequenos jornais, de estrutura simples, cedem lugar à imprensa jornalística e aos almanaques literários, dotados de equipamentos gráficos até então desconhecidos. Não é fato acidental que na principal rua do Centro de São Paulo, a XV de Novembro, onde estavam localizadas as sedes do London River Plate Bank, do Banco Alemão, do Club Internacional, do Jockey Club, da importante livraria Garroux, funcionavam as redações dos principais jornais paulistanos: o Correio Paulistano e a Província de S. Paulo (futuro O Estado de S. Paulo). Delineava-se a partir de então o fenômeno da grande imprensa - nos termos de Lima Barreto o quarto poder fora da Constituição -, que frente à falta de fatos nunca se furtou a criá-los. 

São Paulo nos anos 1870 era uma cidade carente de atividades científicas e educacionais e, paradoxalmente, almejava ver-se representada como tal. O ambiente era, portanto, adequado para a criação acelerada de escolas e instituições de pesquisa. Essa é a época dos "homens de sciencia" (que percorriam orgulhosos o Centro de São Paulo); do fortalecimento e aparelhamento da Faculdade de Direito; o momento da abertura do Museu Paulista (1885), do Observatório Astronômico (1894), do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo (1894) e da estruturaçã o de uma série de escolas privadas. Nos últimos anos do século passado foram fundadas nos arredores da região central a Escola Politécnica e a Mackenzie College, assim como a Escola Normal transferiu-se para um edifício de proporções maiores. Na década de1880 foram estabelecidos o Externato São José, o Instituto Artístico, o Externato Araújo, entre vários outros.

Nesse panorama, os pequenos alunos ganhavam as ruas e os estudantes universitários passavam a expor seus costumes boêmios. É a era das "repúblicas", das noitadas entre acadêmicos que, como observava um viajante da época, transformavam a cidade com seu monótono uniforme: óculos, monóculos ou o elegante pince-nez.

"Famílias modestas geralmente alugavam para rapazes solteiros os cômodos de suas casas cujas janelas davam para a rua a fim de gozarem a devida liberdade. Em descompensação ficam eles a seco devido à falta de banhos." Pereira de Souza. (1886-1891)

Enfim, aí estava o novo Centro de São Paulo; um Centro de muitas faces. Era nesse local que se concentravam o luxo, a diversão e a representação de uma metrópole que, bem no meio dos trópicos, mais se imaginava como uma pequena Paris (circundada pela pobreza dos bairros operários). Lá no centro de tudo, vivia-se a ilusão de que o futuro es tava mesmo perto. Talvez sejam os estudantes a melhor tradução desse novo local. Na fala intimista de Castro Alves percebe-se o tamanho do sonho, um pouco da dura realidade e muita garoa.

"Eis-me em São Paulo, na terra de Azevedo, na bela cidade das névoas e das mantilhas... Nós os filhos do Norte...sonhamos São Paulo o oásis da liberdade e da poesia plantado em plenas campinas do Ypiranga... Pois o nosso sonho é realidade e não realidade... Se a poesia está no envergar do poncho escuro e largar-se no campo fóra a divagar perdido nestes geraes limpos e infinitos como um oceano de juncos; se a poesia está no esfumaçar do quarto com o cigarro clássico, enquanto lá fora o vento esfumaça o espaço com a garoa... ainda mais clássica; se a poesia está no espreitar dos olhos negros, ou atravéz das rendas que encobrem as formas das moças, então a Paulicéia é a terra da poesia."

 

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